sábado, 4 de fevereiro de 2012

O mundo perfeito

O intercâmbio é uma porta que dá passagem para um mundo sem volta. Um mundo onde não há mais espaço para o egoísmo, desrespeito ou preconceito. Um mundo onde não há mais a mesma utopia de igualdade, pois lá, as diferenças tem o papel de deixá-lo especial. Um mundo onde todos deveriam entrar. Ou, pelo menos, passar por ele.

Minha entrada nesse mundo começou no meio da Europa Central, em um pequeno país chamado Hungria. Sem saber nada sobre os seus costumes, cheguei na cara e na coragem, em busca de uma experiência inesquecível. Apreciei suas qualidades e vivenciei seus defeitos, como um viajante que busca o conhecimento assíduo do seu destino.

A Hungria é conhecida por sua bela Budapeste, por seus inventores, cientistas, intelectuais, rios, planícies, culinária temperada e um povo hospitaleiro. Pode não ser o país mais importante do velho continente, mas com certeza é um dos mais tradicionais e peculiares (peculiaridade essa que me rendeu vários momentos difíceis e engraçados no início da viagem).
Com pouco mais de dez milhões de habitantes, o país se destaca por exportar personalidades  para o mundo. Vem ganhando espaço no meio cinematográfico e artístico, sendo cenário de várias produções hollywoodianas. Possui um povo amigável, talvez o mais receptivo da Europa. Suas paisagens são deslumbrantes: uma mistura de simplicidade e antiguidade. Foi palco de várias guerras, venceu muitas. Honrou Roma em um passado distante, mas perdeu mais da metade do seu território depois da Segunda Guerra Mundial. Sua população é orgulhosa por suas conquistas, mas ainda chora a mágoa de ter sido injustiçada  em tempos remotos. Nunca perderam a sua identidade. O Folk húngaro está no sangue de seus habitantes e segue como tradição que encanta turistas e os próprios nativos, todos os dias. Seus rios são vistos como deuses e embelezam ainda mais as paisagens sem relevos cercada pelos Cárpatos. Respira o desenvolvimento sem deixar os traços da época comunista. Possui cidades verdes, coloridas, cinzas. Castelos e vinhedos. E a capacidade de encantar os olhos de quem vê.

Embarquei nesse mundo sem falar a sua língua, sem conhecer os seus hábitos ou gostar da comida. Passei por momentos engraçados devido à mudança radical de maneiras. Comia língua de porco sem respirar para não sentir o gosto e sorria para agradar os que me recebiam. Lutava todos os dias contra o sono e a diferença de horário para poder estabelecer minha rotina. Entrava em lojas, saia delas com algo que achava não ter pedido. Me perdia sempre na minha cidade de poucos habitantes por não ver diferença entre as ruas. Entrei em trens errados, não conseguia me achar por não saber pronunciar o nome das cidades. Passei frio no inverno, mas gostava de ficar na neve mesmo assim. Aprendi a falar como os húngaros, comer como os húngaros e até dormir como os húngaros. Achava as coisas feias bonitas, as bonitas, lindas e as lindas... sem palavras! Vivi como um húngaro com coração brasileiro. Aproveitei todos os segundos, senti saudades e desejei que certos momentos nunca tivessem ido embora. Me recordo intensamente dos dias do melhor ano da minha vida.

No começo, o choque cultural nos impede de olhar para o país que está nos recebendo de maneira respeitosa. Por mais que haja uma preparação, é inevitável a comparação com o nosso país natal que, a princípio, parece ser o melhor do planeta, mesmo se estivermos na nação mais desenvolvida dele. Nossos costumes são vistos de modo estranho para os nativos do novo lugar e isso causa repúdio. O jeito é entrar nesse momento de cabeça aberta e aprender a ignorar coisas irrelevantes.

Tudo é tão igual e ao mesmo tempo diferente. Essa fase de adaptação talvez seja a mais difícil, mas, sem ela, a essência do intercâmbio é impossível de ser sentida. Nesse contexto se encaixa perfeitamente aquele clichê: é encarando os obstáculos que se vence a vida. No caso, o sucesso do seu ano lá fora. É nessa fase também que nosso queixo cai, nossos olhos se arregalam e nos pegamos do nada dando suspiros involuntários. Toda aquela novidade faz-nos sentir dentro de um filme. É uma verdadeira paixão pelo ambiente e principalmente pelas suas características que o distingue da nossa cultura. É assim até cair a ficha de que somos nós ali mesmo. De que tudo é mesmo real e há desafios a serem enfrentados.

A situação nos deixa hipnotizados, mas aquela saudade de casa é quase inevitável. Nos vemos sem o conforto e apoio dos familiares. Sentimos falta da família, do cachorro, dos amigos. Começamos a nos perguntar se realmente aguentaremos até o fim. Depois de toda essa crise de consciência, o nosso mundo vai caindo aos pouquinhos. É a comida, é o clima, são as pessoas. "Ah... que saudade! Saudade do meu país, do meu bairro, da minha vida social". Um verdadeiro dramalhão mexicano, que só vai acabar quando os primeiros laços com o país anfitrião começarem a ser criados.
É o fulano da padaria, o garçom do bar da esquina, o motorista do seu ônibus. Todos irão parecer estar em perfeita sintonia e o seu entrosamento com as pessoas da cidade vai aumentar a cada dia. Sem falar da relação com a família hospedeira, que será preciosa para o firmamento na cultura local. Em alguns casos, nos pegamos chamando os membros dela de "pai", "mãe", "irmão" ou "irmã". É um dos maiores prazeres do intercâmbio.

Daí para frente, tudo fica mais fácil. É como se fôssemos anestesiados. O tempo passa, fazemos amigos, viagens, passeios, conhecemos profundamente a língua, costumes... e opa! "Já estou quase no fim dessa empreitada". Meses que se parecem anos e ao mesmo tempo poucos dias. Sensação esquisita. Começamos então a olhar para trás. Pensar no que não fizemos, no que fizemos e nos arrependemos, no que deveríamos ter feito. Começamos a nos ver rodeados de lembranças que vêm juntas de um sentimento de felicidade e missão cumprida. É hora de prestar contas com o nosso tempo vivido. Ver o que aprendemos, reconhecer o que ainda há de ser aprendido. Ter a humildade de aceitar as falhas e, como um bom intercambista, consertá-las e levá-las como aprendizado. É o tempo que voa, mas não leva consigo os momentos que o seu coração já se encarregou em guardar.

Sinto informar que, depois disso tudo, vem novamente a saudade. E dessa vez ela é a pior de todas. Saudade antecipada daquele lugar que era tão estranho, mas que agora é inimaginável vê-lo sem você. É o grande fardo de qualquer desbravador que se encanta com as novas descobertas, mas que se sente ferido ao ter que deixá-las. Porém, esse sentimento não deve ser tratado com desprezo. O lado bom dessa saudade é que ela é a brecha necessária para futuros reencontros. E o portal para a vontade de conhecer mais e mais.

Após todas essas experiências, não se sabe se quem mudou foi você ou o mundo. Talvez os dois. Daí para frente, as coisas tomam outra forma. A bagagem cultural passa a ser ser causadora de união e não de conflitos. É assim que é o mundo na visão de um estudante de intercâmbio. Aquele mundo que falei ali em cima.

A Hungria me fez passar por todas essas experiências e crescer com elas. Me fez perceber que todas as partes do nosso planeta devem ser iguais no modo em que são tratadas, mas diferentes no modo em que devem ser sentidas. Me fez tirar todo o proveito possível desse mundo que parecia encolher mais a cada dia.

Nossa missão de fato chega ao fim quando passamos a entender os nossos mundos. O mundo do antes e o mundo do depois. Aprendemos a balancear os dois universos e a viver com mais sobriedade nesse meio termo. Agora queremos explorar novas galáxias, conhecer novas estrelas. Percebemos o quão pequeno é o lugar que estávamos e a ganância por grandeza começa a se aflorar. Chegou a hora de mudar o mundo que nos mudou. E o segredo do sucesso: viver o seu mundo enquanto procura novos universos.